Exposição Identidade (2)

Visitar uma exposição de Vera Bettencourt é ter a impressão de entrar num livro de histórias. A abordagem discursiva que preconiza é essencialmente narrativa e o tratamento uniforme e exuberante da cor, a anulação dos volumes, a dimensão precisa dos contornos que caracterizam a sua pintura estão muito próximos da linguagem figurativa dos comics.


Não é recente a ligação de Vera Bettencourt às histórias tradicionais, pelo que não é de admirar que escolhesse para tema destes seus últimos trabalhos as lendas açorianas e que os povoasse de vozes de poetas como Antero de Quental, Natália Correia, Urbano Bettencourt, Manuel Jorge Lobão e José Berto.

O que acontece, porém, é que esta opção não é inócua e o que se verifica é que, devido a essa migração da escala individual para a dimensão colectiva insular, a pintura de Vera Bettencourt sai contaminada por uma espécie de amarga desolação, que lhe era alheia. É que, nas séries anteriores, a lógica era a dos contos de fadas, em que o percurso da heroína é individual e se faz sempre no sentido da realização pessoal, dependente da ligação ao outro, tal como a fórmula

«e foram felizes para sempre.»

exultantemente programa. Ora o funcionamento das lendas é bem outro, já que estas remetem para o real e para a história colectiva.

As lendas liberam sentimentos de mistério desencadeados por acontecimentos perturbadores da vivência comum, revestindo-os muitas vezes duma dimensão fantástica, mas não resolvem a angústia que, nas mais das vezes, lhes é inerente, por não lhes atribuírem uma lógica pedagógica ou moralizadora. Daí, talvez, que as telas de Vera escureçam e os fundos se esfumem, perdendo a nitidez segura que uma única cor compacta lhes costumava atribuir.

Os quadros que perfazem a série Identidade são perturbadores, angustiantes, como se ao atravessar a fronteira de si e ao avançar para o domínio do colectivo, a dor, a solidão, o medo fossem minando o colorido da ilha íntima. Há procissões de mulheres desvairadas, barcas fantasmagóricas de marinheiros perdidos, amantes esvaindo-se em choro, olhos esbugalhados de terror, bocas esburacadas de pânico. Os demónios que acossam as gentes estão próximos, brincalhões e dançantes, à maneira vicentina. Mas o auxílio implorado, esse faz-se esperar. Antero glosa o desespero comum face ao silêncio divino, argumentando de forma pungentemente lógica a certeza desse amor lamentavelmente ausente. Veja-se como, no Salmo, a passagem do tempo é jocosamente marcada apenas ao nível do celestial, pela presença do avião, já que hoje como ontem, «Deus tapou com a mão a sua luz. E ante os homens velou a sua face».

Curiosamente no quadro Maria II verifica-se um retorno às cores vibrantes e à ambiência garrida das telas das exposições anteriores, como se à semelhança da «encantada» também a pintora se esforçasse por se libertar dessa herança de lamentos que a atabafam de pranto.

Tal como afirma Lourdes Atayde, «(A) actual série, revela sem dúvida, e mais consciente do que inconscientemente, a sua própria Identidade. Mais precisamente, a desmitificação, por parte de uma Identidade presente, de uma mais antiga, já apreendida.»

Lendas populares, versos de poetas, imagens do perfeito presépio da paisagem, marcas da carga histórica, épica e mística insulares, fundem-se nesta tormentosa Identidade, constituindo uma amálgama em que se intui um sentir simultaneamente plural e íntimo, já que não se nasce nunca impunemente em praias açorianas.

Ana Lúcia Gonçalves Almeida




A UM CONSTRUTOR DE BARCOS QUE FOI MEU PAI *
(Poema de Urbano Bettencourt)
Técnica mista sobre tela
100x130cm
2010
Colecção do Museu da Graciosa 




DORME VELHA
(Poema de José Berto)
Técnica mista sobre tela
100x130cm
2010
Colecção da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa 




MARIA
(Poema de José Berto)
Técnica mista sobre tela
70x100cm
2010
Colecção Vantag 




MARIA II
(Poema de Manuel Jorge Lobão)
Técnica mista sobre tela
130x100cm
2010
Coleção da Casa dos Açores do Norte 




MARIA III
(Poema de José Berto)
Técnica mista sobre tela
130x100cm
2010
Colecção de Arquipélago - Centro de Arte Contemporânea 




MARIA IV
(Poema de Manuel Jorge Lobão)
Técnica mista sobre tela
70x100cm
2010
Colecção de Arquipélago - Centro de Arte Contemporânea 

Comentários

Antónia disse…
Gostei muito. Parabéns.
Beijinhos.
Antónia
Vera Bettencourt disse…
Obrigada Antónia!
Beijinhos!